domingo, 11 de julho de 2010

Alpendorada, um espaço na literatura

O Romantismo, como período de grande produção literária, serviu-se do espaço de Alpendorada, pela mão de Camilo Castelo Branco e Alberto Pimentel. Enquanto o primeiro o explora na Bruxa de Monte Córdova e em Mosaico & Silva, o segundo fá-lo no romance Testamento de sangue e em Peregrinações N’Aldea. Se as coordenadas temporais destas obras se apoiam, de uma forma geral, na época conturbada de oitocentos, o cartório de Pendorada, mesmo sem textos significativos de carácter literário, apresentava um enorme acervo de documentação das origens da Língua Portuguesa.
Do cartório deste mosteiro, um dos mais ricos do país, foram recolhidos 934 pergaminhos e um manuscrito em papel, todos eles anteriores à data de 1279. Entre estes documentos, salientam-se dois diplomas originais do rei Garcia da Galiza, com as datas de 1068 e 1070, únicos originais daquele rei, existentes em Portugal. De todos estes pergaminhos, constava o mais antigo documento latino-português: Castimiro, a sua mulher Asarilli e seus filhos fundam a igreja de Santo André de Souzelo, à sua própria custa, numa herdade conquistada aos Mouros pelos seus antepassados. Aí colocaram monges e, no ano de 870, fizeram uma doação de várias herdades à referida igreja, em benefício dos seus herdeiros, deixando-lhes esse mesmo património religioso .
Na primeira metade do século XV, Fernão Lopes anotou, na Crónica de El-Rei D. João I de Boa Memória, a presença do abade de S. João de Pendorada, Afonso Martins, nas Cortes de Coimbra, onde o Mestre de Avis foi aclamado rei de Portugal, muito pelo contributo do advogado Dr. João das Regras:

E em esto chegou o dia, que hauiam de entrar as Cortes, nas quaes eram presentes estes Prelados, s. Dom Lourenço, Arcebispo de Braga, D. Iohaõ, Bispo de Lisboa, Dõ Lourenço Bispo de Lamego, D. Iohaõ Bispo do Porto, D. Iohaõ Bispo de Évora, Dom Frey Rodrigo bispo da dita Cidade, Dom Frey Vasco Bispo da guarda, o Priol de Sancta Cruz, o Abbade de Sam Iohaõ de Alpendorada & o Abbade de Bestellos, & Ruy Lourenço Adayaõ de Coimbra, grande letrado, & outras honradas pessoas Ecclesiasticas .

Camilo Castelo Branco, em Mosaico e Silva, apoiando-se num manuscrito anónimo, dá voz a Um Viajante no Minho em 1785. Esta curta narrativa de viagens não vai de Lisboa a Santarém, mas de Tondela a Sardão. E se Garrett denunciava a degradação do património, também o desconhecido viajante em nada se alegra com o estado dos livros nos mosteiros por onde passava. Sobre Alpendorada, o turista atravessa o Douro em Fontelas e visita o mosteiro:

Parti de Alvarenga pela manhã, e sabendo que em Nespereira, meia légua distante, estava o abade de Pendurada, fui - o visitar nas casas do Recibo que aí tem o mosteiro, mas muito más. Por serra e mau caminho vim passar o Douro a Fontelas, que dista duas léguas de Alvarenga.
Cheguei enfim a Pendurada, e depois de merendar do que tinha necessidade, fui à igreja, que está Formosíssima e bem acabada em tudo. Passei à cela do recebedor, onde achei vários prazos antigos soltos pelo chão com perigo evidente de se perderem. No mesmo se acham também vários prazos de 1400, que carecem de melhor arrecadação. Vi a livraria antiga, que estava na casa mais imunda que imaginar se pode, cheia de teias de aranha e – o que é mais – de bacalhau, uvas, maçãs, etc
.

Entenderiam já estes frades que a leitura seria um prazer absoluto, a julgar por estas iguarias abraçadas aos livros, mesmo sem podermos identificar o etc ! Para contrariar esta desolação, o viandante refere que “A nova casa na livraria tem já as estantes acabadas, e ficaram boas e com muita luz ”. Pela tarde, o caminheiro vai à Lama e fixa-nos o património:

No caminho junto a um cruzeiro, que fica ao sair do território do convento, se vê uma sepultura antiga, em cuja campa está esculpida uma espada e na cabeceira uma cruz que ma pareceu de Avis. À direita fica o monte Arados, onde se vêem alguns vestígios de fortalezas e casas antigas. Também lá se vê uma cova ou porta dela, onde dizem estivera um fulano da família dos Montenegros fugido ou escondido por causa da justiça, e de quem contam muitas patranhas. […] Enquanto cá estive nesta casa sempre fez demasiado vento .

Esse turista encontraria ainda o túmulo medieval e, talvez, a ventania. Deve-se ao segundo aspecto a insistência popular em separar o segundo termo da expressão “Alpendorada Convento”, presente numa placa indicadora do monumento. Os mais novos libertam a preposição do substantivo agitado – com vento - ; os mais velhos, numa perpetuação da pronúncia regional e na recordação do patrono beneditino, preferem com bento. Esta ventania não passa incólume à adjectivação do cronista Pe. David Teixeira, em 1927:

Domina n’esta região um vento desabrido, descomposto e damnôso, que nascendo ora das bandas da Galiza, ora dos lados de Mezão frio, quando galga por ahi abaixo, varrendo estradas, açoitando montanhas e varejando arvore, toma as proporções d’um flagello …

Em 1867, com 42 anos, Camilo Castelo Branco dá-nos A Bruxa de Monte Córdova. A acção, que percorre o período de 1832 até ao tempo da escrita, mostra-nos um Portugal em guerra fratricida entre liberais e absolutistas. Nem o clero assume uma posição neutra (o autor lembra a existência de 537 mosteiros e conventos), como podemos aferir da seguinte postura dos frades de Alpendorada, seguindo a tradição do frade que Gil Vicente apresenta no Auto da Barca do Inferno - “Deo Gratias! Demos caçada!” :

A comunidade prosseguia a começada discussão sobre sair do convento em demanda do exército realista, ou acastelar-se nele com guerrilhas levantadas nos seus domínios e esperar o ataque. Prevaleceu o parecer de se conservarem, e sobreveio a corroborá- lo a notícia de que as forças liberais, depois da saída sobre Penafiel, se tinham recolhido ao Porto. Não obstante, o mosteiro, requisitando armas aos caseiros, ajuntou muitas variedades delas, desde o bacamarte de boca de sino até à baioneta encravada em rijos paus de carvalho, desde o punhal até à foice roçadoura. Além disto, preveniu as freguesias circunjacentes, que no lanço de ouvirem tocar a rebate os sinos do mosteiro, convergissem logo àquele ponto, fazendo repetir o toque nas sinetas paroquiais .

Se as hostes absolutistas contavam com o apoio da maioria dos monges beneditinos, é mesmo daí que parte frei Tomás de Aquino e integra as tropas liberais na Ilha Terceira. Isto acontece depois da sua evasão do mosteiro de Tibães onde estava encarcerado. Para isso contribuiu a ajuda do seu antigo confidente, frei Jacinto de Deus, deportado no mosteiro de Alpendorada, ao enviar-lhe as chaves que o libertam do tronco. É ainda este frade que, perante a ameaça da investida liberal, recusa pegar em armas, criticando a atitude dos frades que o fazem. Por isso, recebe a ordem de saída do convento de Alpendorada:

Volvido mais de ano, no dia 3 de Setembro de 1833, dois dias antes da morte de Tomás de Aquino em Lisboa, marcharam do Porto três colunas, uma das quais ganhou sem impedimento o território decorrido até Penafiel.
A tropa e guerrilhas realistas desalojaram daquela paragem, debandando desordenados pelas estradas de Amarante e Canaveses. O maior número dos que seguiam a segunda direcção derramou-se pelas aldeias circunvizinhas, estendendo o terror e o alarme até ao Mosteiro de Alpendorada .

Em Testamento de Sangue, publicado em 1872, Alberto Pimentel, biógrafo e amigo de Camilo, apresenta-nos também o mosteiro de Alpendorada, no período conturbado de 1821. Tal como n ’A Bruxa de Monte Córdova, de Camilo, os frades surgem vestidos pelo narrador com um hábito pejorativo:
Surpreenderam-nos as badaladas da Ave-Maria, vibradas nos sinos de Alpendurada, a meio da encosta do Monte Arados. Estamos no final de Abril de 1821. […]
Em metade do monte verdejam os pomares do mosteiro de Alpendorada: a outra metade é baldio. Discorrem pela cerca os religiosos meditativos; alguns mais propensos ainda ao veso mundanal da curiosidade, espreitam do parapeito do muro as cavalhadas que passam, galgando a encosta . […]
- Olá, sr. Simão Esteves! Boa poesia lhe ensinaram os vizinhos de Alpendorada, não há dúvida, essa de sair a esperar o sol! Olhe que se for ao convento encontra-os ainda reclinados nos catres, com mais de dez horas de sono […]
Ao fim da tarde Simão Esteves tinha recolhido ao solar, onde dois frades abelhudos de Alpendurada estavam discutindo calorosamente a história portuguesa que se lia então […]
Os frades combatiam as Constituintes, censuravam D. João VI por jurar as bases da Constituição .

Contrariamente a esta postura dos frades, um outro beneditino parece reflectir sobre a solidão, acompanhado de Simão Esteves, o jovem aprendiz das letras, no mirante do Picão. O livro que os acompanha é a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro. A paisagem enreda-se ao estado de alma do frade :



Vi - me só, muitas vezes me debrucei neste mirante com o coração a estalar de mágoa. Maior apartamento do que este não há. Serras e água! Serras que comprimem o peito, e água que põe melancolia! .

O lugar do Tojal, também espaço de discussão política, assume particular relevo, pela especial figura do boticário. O folhetim oral partia deste personagem, com auditório garantido, apesar da farmácia apresentar um aspecto pouco acolhedor, com os caixilhos da porta sem vidros, e uma janela empapelada. Mas como a filosofia não vive da aparência, “o boticário do Tojal era escutado por uma roda de auditores efectivos ”.



O cais de Fontelas, próximo do mosteiro de Alpendorada, é o ponto de ligação entre as duas margens do Douro, onde atravessa o bando dos Aragões, para capturar Luís Cipriano de Meireles. Vemos nestas famílias a situação de terror, nesse período de guerra civil, em Portugal.
Em Peregrinações N’ Aldea, de 1870, a infância do narrador, em Souzelo, é-lhe despertada pel’Os Sinos d’Alpendurada, toque para uma narrativa explicativa da origem do Mosteiro, pela mão da saudade:



Sinto que te aproximas de mim e adivinho a tua mão invisivel a apontar-me para as solidões do monte Arados, que se debruçam sobre o Douro, namoradas da corrente. Vejo d’aqui alvejar a velha casa dos Padres de S. Bento uma legoa acima de Entranbolos Rios, como dizem as chronicas, entre as arvores frondosas da cerca e ao lado do campanario magestoso do templo .

Múnio Viegas, apaixonado por uma dama, encontra-a morta com o punhal que retirara ao corpo de seu próprio pai, depois do confronto entre este e um cavaleiro árabe que desejava desposá-la. Na consequente peregrinação contra os mouros, Múnio Viegas acaba prisioneiro dos árabes. Sabendo, então, dos milagres de S. João, promete beneficiar a ermida pela sua liberdade:

Consummou-se o milagre e voltou Munio Viegas. Demudado vinha porém. Quando o sacerdote Velino olhou n’elle, desconheceu-o. Munio Viegas vinha velho, triste, alquebrado.
Largo espaço praticou com Velino e com o monge Exameno, que a esse tempo auxiliava o sacerdote, sobre os prodigios do sancto e as tribulações do captiveiro. Revelou-lhes o intento em que estava e, poucos dias depois, fazia doação de todos os seus bens, que muitos eram, a S. João Baptista, orago da capelinha.

Testemunho da beleza da primeira construção românica.

O Catre do Bispo, narrativa inserta na mesma obra, é dedicado a Camilo Castelo Branco. Neste folhetim, o narrador centra a peripécia na cama em que terá descansado D. Fr. João de S. Joseph de Queiroz, 4º Bispo do Grão – Pará. Nascido em Matosinhos, em 12 de Agosto de 1711, assume o bispado em 1760, visitando as paróquias dessa província, no ano seguinte. Nas Memórias, o bispo apresenta as povoações visitadas, os seus costumes, a sua língua, a fauna e a flora. Em 1763 regressa a Belém do Pará e é alvo de intrigas que o afastam do bispado. Regressa a Portugal, onde faleceu a 15 de Agosto de 1764.
Na extensa introdução às Memórias, Camilo não esquece de caracterizar o mosteiro de Pendorada, com as mesmas cores da alma do bispo, por ter sido para aí desterrado:


Desembarcou em Lisboa, e foi á portaria do seu mosteiro. Acolheram-no uns frades com menos-preço, outros com piedade. Sabiam todos que a deshonra d’aquelle filho de S. Bento era irreparavel.
Poucas horas depois, frei João de S. Joseph recebia do governo ordem de se recolher como desterrado ao convento de S. João de Pendurada, Entre – Douro - e - Minho. Ordem urgente e de cumprimento immediato, ordem como as dava o conde de Oeiras, o seu velho amigo Sebastião José de Carvalho.
S. João de Pendurada!
É aquelle mosteiro triste, empinado n’uns rochedos que se debuçam sobre o Douro. É lá em cima no monte d’Arados, onde as neves hybernaes requeimam as raizes do bravio para que alli não floreçam os gestaes em abril, nem as tojeiras no dezembro se dourem com seus festões amarellos.
Que desterro!
Alli entrou o bispo, precedido da noticia de sua infamia e desgraça.
Era em fins de Janeiro de 1763.
Que lugubre lhe choraria tudo em volta d’elle! Uns frades suspeitosos, cuidadando que o consolarem o desterrado lhes acarrearia lenha e betume para os supplicios eternos. Uma casa escura, silenciosa, cheia de toada gemente do vento a sibillar nos velhos vigamentos!
E alli, elle o frade fidalgo da corte de D. Maria Anna d’Austria e de D. José I ! O commensal dos duques, dos condes luxuosos, feitos na côrte do Luiz XIV portuguez! Elle, o amigo, o convivente dos Cenaculos e Barbosas, alli, em meio de sandeus e fanaticos, que o fugiam como de leproso, a quem o governo, sequer, não concedia defender-se…
Que fazia? agonisava.
Mas, ainda assim, com a morte sobre o seio, seio robusto de cincoenta e tres annos, que longos paroxismos!
Viveu oito mezes. Morreu em 15 d’agosto de 1764.
Conformado? resignado? As cinzas sei eu que dormem pacificamente na claustra do mosteiro triste, ha mais de um século, se é que o arado as não remecheu para abrir ao travez das ossadas as hortas de que se nutrem os viscondes d’Alpendurada, actuaes senhores do mosteiro ”.

Alberto Pimentel consulta o romancista de Ceide sobre a biografia deste clérigo, deportado para Alpendorada. Desta forma, a correspondência entre Camilo e o seu seguidor serve de introdução à narrativa :

“ Postas estas palavras, vou consultar v.exc.a sobre um caso que prende, talvez, com a biographia do bispo do Grão-Pará, fr. João de S. Joseph Queiroz. Falla v. exc.a do Mosteiro d’Alpendurada, na introdução ás Memorias, com muita verdade descriptiva e quer-me parecer que já peregrinou em terras visinhas do hospicio benedictino. Se sim ou não, ignoro. Na margem esquerda do Doiro, parallela ao mosteiro d’Alpendurada, estende-se a freguezia de Sozello (…). Na casa da quinta de Villa Verde, - denominação verdadeiramente bem cabida á propriedade, - havia, ha poucos annos, um leito de pau preto, com insignias episcopaes gravadas na cabeceira. Era de tradição na familia o chamar-se áquelle leito o leito do bispo d’Alpendurada. Na restricção d’Alpendurada havia manifesta mentira. Nem que o mosteiro fosse diocese! Contava a lenda, que costumava dormir n’aquelle leito um bispo velho e triste, que d’Alpendurada ia de visita ao nosso alpendre. Daqui veio a dizerem os quinteiros, por ignorancia, bispo d’Alpendorada.(…).
Seria este bispo o pobre Queiroz que, por minorar as maguas do seu desterro d’Alpendurada, passasse na barca para o outro lado em demanda do tugurio hospitaleiro de pessoas piedosas? Mas se elle tinha sido desterrado por ordem d’aquelle severissimo conde d’Oeiras, será licito suppôr que consentissem os frades n’estas digressões, posto que breves, frequentes?
Eis aqui o que não sei. O leito desconjunctou-se de velho. Guarda-se, hoje, apenas a cabeceira na casa de Villa Verde. (…).
Queira v. exc.a dizer-me do caso o que pensar, com a franqueza indefeza ao seu mais reconhecido
admirador e discípulo
Alberto Pimentel ”.

De Seide, Camilo responde-lhe, em Abril de 1870.

“ O bispo do Grão- Pará, sem embargo de ter sido desterrado pelo Pombal. É bem de crer que sahisse do mosteiro quando bem quizesse, já porque era perlado insigne, já porque era benedictino e estava entre os seus. Quanto ao leito, se tem o espaldar de columnas em rosca, sem duvida era coevo do bispo, porque esse feitio de catres é o da renascença, que principiou no começo do seculo XVIII. Mas quem mandára abrir as insignias episcopaes? Os antepassados de V. em honra do seu hospede? Ou elle mesmo? Não é natural a segunda hypothese. Se bem me recordo, o desterrado viveu alguns mezes escassos em Alpendurada. De certo não cuidaria em commodos de cubiculo, e menos em pompas nobliarchicas. Seria mais acceitavel que os hospedeiros amigos de Villa Verde o honrassem com essa prova de reverencia. Mas a brevidade do bispo em Alpendurada daria tempo a isso? (…).
Estive á porta do Mosteiro d’Alpendurada com José Augusto Pinto de Magalhães, da casa de Lodeiro, em Sancta Cruz do Douro. É o personagem d’um fragmento de um livro que intitulei: No Bom Jesus do Monte. Era em Dezembro de 1850. Ha 20 annos! A minha alma de hoje comprehende melhor o frio asperrimo e o local onde estivemos uma hora a apostrophar o barão que subtituiu o frade ”.

Entretanto, Alberto Pimentel acrescenta algumas informações sobre o catre :

“ O leito do bispo é perfeitamente da renascença. Aventemos agora hypotheses sobre o caso das insignias do espaldar. É de suppôr que já houvesse o catre na casa de Villa Verde, e que talvez, depois da primeira visita do bispo, mandassem ao Porto abrir os emblemas nobliarchicos a qualquer samblador. O bispo viveu em Alpendurada, segundo v. exc.a diz nas Memorias, cerca d’oito mezes. Do caes de Fontellas sahem barcos de carreira para o Porto todos os domingos. A facilidade do transporte e o pouco trabalho artistico das insignias do catre authorizam o suppôr-se que os meus avoengos quizeram honrar o seu illustre hospede com esta distincção.
Este leito, onde o prelado do Grão-Prá dormiu as longas noites de Villa Verde, tem ainda uma história que eu desejo contar em folhetim. Peço vénia a v. exc.a para publicar a sua carta no prologo da minha narrativa, por isso que v. exc.a corroborou a supposição da fidalguia do leito ”.

Será então este espaço que libertará Martinho de Teive da ideia de ser precocemente vítima de um aneurisma. Por conselho, casa-se este fidalgo de Castro Daire com Virgínia, filha de um lavrador abastado, proprietário no concelho de Bouças, mas nem esta nova situação lhe retira a ideia fixa. Continuamente afirmava que a foice implacável da morte lhe roçava a garganta, por isso, o seu desejo seria terminar os seus dias na terra onde nascera:

“Quinze dias depois da visita do medico, desembarcavam no caes de Fontellas, que defronta com o mosteiro de Alpendurada, Martinho de Teyve e Virginia. Tinha sido triste e longa a viagem pelo Douro acima, n’um daquelles ronceiros barcos d’espadella, que vêmos a toda a hora amarrados no ancoradoiro da Ribeira ”.

Sendo noite, foram acolhidos na casa de Villa Verde, por sugestão do doente. Virgínia repara, então, na estranheza de uma cama e pergunta pelo seu utente:

“ – Era ahi que costumava dormir, ha cerca de cincoenta annos, o bispo d’ Alpendurada, quando vinha visitar os nossos amos, disse a mulher do caseiro (…)
- Mal me lembro d’elle. Era pequena, quando o vi, mas pareceu-me triste e doente ”.

A pedido de Virgínia, os caseiros permitem que Martinho de Teyve se deite na cama do bispo. A partir do dia seguinte, a ideia do aneurisma desapareceu da cabeça do fidalgo. Morreu de tifo, quinze anos depois. Entretanto, Virgínia, já velhinha, cumprimentava o narrador, afirmando-lhe que aquilo fora um milagre.

Se já o Testamento de Sangue abria com a referência a Alpendorada e ao rio Douro, o mesmo acontece com o Alto Douro Ignoto de Sant’Anna Dionísio:



De um lado, descem em catadupas, os contrafortes da serrania de cumes invisíveis; do outro, prosseguem os tendões e os músculos vigorosos que vão afundar-se, lá para diante, para os lados de Alpendurada, nos encaixados meandros do rio que já se pressente mas ainda não está à vista. […] O monte que acabamos de trespassar faz ainda um agigantado galgão, com o seu empolado dorso revestido de frondosas crinas verdes, antes de cair, lá diante, para os lados de Paços de Gaiolo e Penha Longa, sobre os despenhadeiros do Douro. A meia encosta, na ilharga do enorme dromedário verde, desenha-se a fita sinuosa da carreteira que segue para Entre-os-Rios .

Na viagem do Porto até Bitetos, o olhar descobre os encontros das águas do Tâmega e do Paiva, no Douro:

Por fim, vislumbra-se, ao fundo, uma leve alteração no esplêndido cenário. É o limiar de Entre-os-Rios. Os pendores que cingem o vale salpicam-se de pequenas manchas brancas. As águas do Tâmega encontram-se com as águas do colosso, - “Yo soy el Duero, que todas las agoas bebo” – vindo de longada, das funduras ibéricas de Numância.
O Encontro, como todos os encontros, é festivo e movimentado.

As águas, ao contrário das criaturas, entendem-se.


Passadas as duas pontes e seguindo pelo varandim de Alpendurada, descobre-se outro encontro: a entrada das águas do Paiva no seio do rio todo-poderoso que chega de cima, um tanto mal-humorado, do mau bocado de Bitetos que ele teve de roer sabe-se lá por quanto tempo. O sítio é estranho e fundo. Para o conhecer de perto é preciso descer por uma sinuosa e demorada carreteira, ladeada de muros altos, pequenos vinhedos, de socalcos verdoengos. De súbito, temos de novo ao nosso lado o poderoso pitão, glauco e sussurrante, contorcendo-se entre formidáveis penedias.
Estranho e milenário colosso fugidio!

Este belo horrível que é o Douro em fúria, em alturas de cheia, com os afluentes a engrossar-lhe o dorso, também atrai a atenção de Manuel Mendes, no Roteiro Sentimental Douro:

do Pinhão para o Porto, pela estrada do Marco, porque apesar do mau tempo, da chuva e do vento, quero afastar-me o menos que possa do espectáculo do rio na cheia. Há locais que é de cortar o coração, outros de estarrecer. Debruço-me numa curva da estrada, e lá em baixo causa vertigens, apavora, o cachão terrível em que se debate contra a penedia bruta, como se a quisesse arrancar do firme alvéolo. (…) Sigo pela estrada, parando nos miradouros, contemplando-o donde posso, demorando-me aqui e ali, e por toda a parte o mesmo bramido e a mesma fúria .

Mesmo, agora, esganado pelas várias barragens, o rio, por vezes, ainda se exaspera e ruge no barro espumoso das águas, contrariando os versos de Jorge de Sena “ Parado e sempiterno e velho de águas rio / não passas repassando as águas de outro tempo,/ verde tão verde na manhã parada ”.
Camilo de Araújo Correia viaja da Régua ao Porto, em diferentes momentos, num intervalo de mais quarenta anos. Sente a velocidade dos pontos, a bordo de um rabelo, e a passividade do Ribadouro, já em 1986. Neste momento, o Convento de Alpendorada obriga a uma pausa na viagem e um olhar sensível e crítico do escritor:
Convento de Alpendorada - Hotel. A inestética "dentada" ao antigo alpendre, para possibilitar a passagem de autocarros.

Num trecho silencioso do rio ancorámos para almoçar no Convento de Alpendurada. Do ancoradoiro ao Convento é um salto, mas ninguém dispensou a serventia dos autocarros. Não é à hora física do almoço que se deve ver o Convento de Alpendurada. Sentir o que foi e adivinhar o que poderá vir a ser. No enorme e belo edifício, até há bem poucos anos abandonado, já foi gasto muito dinheiro e muita coragem. Espera-se e deseja-se que nem uma coisa nem outra venham a faltar, agora que está bem perto de ser, ao que julgo, a maior pousada do país. Não tive tempo, nem teria olhos, para apontar inexactidões que porventura, se andem a cometer nas obras de restauro. No entanto, uma figura me pareceu despropositada no jardim fronteiro ao edifício. Uma elegantíssima mulher de bronze, em tamanho natural, oferece, em gesto donairoso, os mimos da sua nudez diante do olhar pisco das celas. Pareceu-me uma provocação aos fantasmas de quem tanto combateu os pecados da carne. Além disso, ninguém sabe do que é capaz um fantasma restaurado… A bela estátua ficaria bem melhor num rochedo, como que saída do rio para ensinar o caminho do paraíso, lá no alto, no Convento.

Quem já não vence os açudes de betão de Crestuma, Torrão e Carrapatelo é a lampreia que, em tempos, pernoitava num tanque de granito de Rodrigo Pinto, para, depois de preparada e enlatada, viajar até ao Brasil, numa saudade em calda.
Em sentido oposto, os Contos de Rodapé, de João Costa, crescem perto das águas durienses, desde o Penedo Durão até ao Porto. Esse fio líquido alimenta as histórias com os títulos pintalgados no mundo vegetal. Em Amoras, o Ribeiro é o berço da infância do narrador. São águas que lavam mágoas:

Ao sair do Ribeiro, o medo enfiava-se na sacola de pano escuro, encaixilhando a lousa. Na Lama, o edifício da escola, com um odor a reguadas e canadas, engolia diariamente um alarido provocado pelo seu residente .

Há neste conto como que uma ascensão ao Ladário de penedos mágicos, no palmilhar dos lugares do Ribeiro, Caminho Velho (a lembrar uma rua medieval), Vinha de Além, Serrinha, Sol Posto, Saibreira e a Linha Recta. Aí descansava o olhar maçado pelo caminho, nos instrumentos de pedreiro utilizados pelo pai, a quem acabara de trazer o almoço. No meio de tanta dureza granítica, sentia fascínio em “Tanto ferro para transformar o Ladário em pão e arte! ”.
O plano do fantástico é notório em Campainhas e Erva-Peixeira. No primeiro texto, o monte Arados acolhe o gato surreal, a ronronar sonho; no segundo, são as águas do rio, aromatizadas pelo vinho do Porto e por esta erva, que realizam um aventureiro Ramiro.
O título Mirtilo espreita de um ancestral lugar da Devesa, já desaparecido, mas entranhado na memória, como a baga desse fruto silvestre escondido no musgo e na sombra. É, cada vez mais, um fantasma de um paraíso vegetal que vai sendo destruído, irreparavelmente. É um desejo feito alma penada, num tempo em que as sombras já não vêm das árvores, mas das varandas de betão!

Vasconcelos do Al, pseudónimo de João Costa, em Gatafunhos (2005), apresenta-nos o pequeno conto O Canteiro das águas. É uma metáfora do trabalho artístico da água nos penedos, semelhante ao duro mas sensível trabalho do pedreiro-artista. É a saga de um homem e de um rio. O pedreiro e o Douro numa eterna simbiose: "No fundo dos rios, as rochas tomam múltiplas formas, enquanto o barco desliza, a venerar o remador que fez dos cinzéis a sua imaginação." Aqui estão evidentes os rios Douro e Tâmega e os lugares do Monte, Ladário, Santa Cristina, Cano, Mosteiro, Lama e Fontelas.

Na crónica jornalística, salpicada de humor, intervenção e humanismo, foi mestre o Pe. David Teixeira, desde 1911 a 1955, no jornal O Marcoense. Natural da freguesia de Magrelos, este correspondente jornalístico foi pároco de Alpendorada, com residência em Matos. A peculiaridade da sua palavra estendia-se às penitências do confessionário. Se o penitente fosse pedreiro, substituiria a reza por um corte de levante. Este tipo de trabalho exigia mais esforço que um padre-nosso.
Graças a esta produção jornalística, poderemos rever a história, costumes e tradições de Alpendorada e Matos, durante quase meio século.
Entre 1940 e 42, o Convento de Alpendorada albergou o Alvorecer Claretiano, revista mensal de iniciação literária e científica, órgão interno do Seminário Apostólico dos Padres Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria. Os textos eram da responsabilidade dos alunos deste seminário, alojado no Convento de Alpendorada.
Ainda hoje, este local, pelo soberbo da paisagem, pode retirar uns versos a um viajante.

Texto: Vieira da Costa
Imagens: J.Costa. Fernando Costa e Artur Vieira

3 comentários:

Gogollo disse...

Eu: Pimentel Do Canto;
Sobrinho Tri-Neto de: Alberto Pimentel; Sendo este, irmão de meu tri-avô: Fernando Augusto Almeida Pimentel...
Agradecer pela rica lembrança de minha família, ainda vívida em Portugal, através, em parte, de minha alma.
Obrigado!
As. Pimentel Do Canto

Gogollo disse...

Eu: Pimentel Do Canto;
Sobrinho Tri-Neto de: Alberto Pimentel; Sendo este, irmão de meu tri-avô: Fernando Augusto Almeida Pimentel...
Agradecer pela rica lembrança de minha família, ainda vívida em Portugal, através, em parte, de minha alma.
Obrigado!
As. Pimentel Do Canto

vasdoal disse...

Obrigado,Pimentel do Canto.