Este belo horrível que é o Douro em fúria, em alturas de cheia, com os afluentes a engrossar-lhe o dorso, também atrai a atenção de Manuel Mendes, no
do Pinhão para o Porto, pela estrada do Marco, porque apesar do mau tempo, da chuva e do vento, quero afastar-me o menos que possa do espectáculo do rio na cheia. Há locais que é de cortar o coração, outros de estarrecer. Debruço-me numa curva da estrada, e lá em baixo causa vertigens, apavora, o cachão terrível em que se debate contra a penedia bruta, como se a quisesse arrancar do firme alvéolo. (…) Sigo pela estrada, parando nos miradouros, contemplando-o donde posso, demorando-me aqui e ali, e por toda a parte o mesmo bramido e a mesma fúria .
Mesmo, agora, esganado pelas várias barragens, o rio, por vezes, ainda se exaspera e ruge no barro espumoso das águas, contrariando os versos de Jorge de Sena “ Parado e sempiterno e velho de águas rio / não passas repassando as águas de outro tempo,/ verde tão verde na manhã parada ”.
Camilo de Araújo Correia viaja da Régua ao Porto, em diferentes momentos, num intervalo de mais quarenta anos. Sente a velocidade dos pontos, a bordo de um rabelo, e a passividade do Ribadouro, já em 1986. Neste momento, o Convento de Alpendorada obriga a uma pausa na viagem e um olhar sensível e crítico do escritor:
Convento de Alpendorada - Hotel. A inestética "dentada" ao antigo alpendre, para possibilitar a passagem de autocarros.
Num trecho silencioso do rio ancorámos para almoçar no Convento de Alpendurada. Do ancoradoiro ao Convento é um salto, mas ninguém dispensou a serventia dos autocarros. Não é à hora física do almoço que se deve ver o Convento de Alpendurada. Sentir o que foi e adivinhar o que poderá vir a ser. No enorme e belo edifício, até há bem poucos anos abandonado, já foi gasto muito dinheiro e muita coragem. Espera-se e deseja-se que nem uma coisa nem outra venham a faltar, agora que está bem perto de ser, ao que julgo, a maior pousada do país. Não tive tempo, nem teria olhos, para apontar inexactidões que porventura, se andem a cometer nas obras de restauro. No entanto, uma figura me pareceu despropositada no jardim fronteiro ao edifício. Uma elegantíssima mulher de bronze, em tamanho natural, oferece, em gesto donairoso, os mimos da sua nudez diante do olhar pisco das celas. Pareceu-me uma provocação aos fantasmas de quem tanto combateu os pecados da carne. Além disso, ninguém sabe do que é capaz um fantasma restaurado… A bela estátua ficaria bem melhor num rochedo, como que saída do rio para ensinar o caminho do paraíso, lá no alto, no Convento.
Quem já não vence os açudes de betão de Crestuma, Torrão e Carrapatelo é a lampreia que, em tempos, pernoitava num tanque de granito de Rodrigo Pinto, para, depois de preparada e enlatada, viajar até ao Brasil, numa saudade em calda.
Em sentido oposto, os
Contos de Rodapé, de João Costa, crescem perto das águas durienses, desde o Penedo Durão até ao Porto. Esse fio líquido alimenta as histórias com os títulos pintalgados no mundo vegetal. Em
Amoras, o Ribeiro é o berço da infância do narrador. São águas que lavam mágoas:
Ao sair do Ribeiro, o medo enfiava-se na sacola de pano escuro, encaixilhando a lousa. Na Lama, o edifício da escola, com um odor a reguadas e canadas, engolia diariamente um alarido provocado pelo seu residente .
Há neste conto como que uma ascensão ao Ladário de penedos mágicos, no palmilhar dos lugares do Ribeiro, Caminho Velho (a lembrar uma rua medieval), Vinha de Além, Serrinha, Sol Posto, Saibreira e a Linha Recta. Aí descansava o olhar maçado pelo caminho, nos instrumentos de pedreiro utilizados pelo pai, a quem acabara de trazer o almoço. No meio de tanta dureza granítica, sentia fascínio em “Tanto ferro para transformar o Ladário em pão e arte! ”.
O plano do fantástico é notório em
Campainhas e
Erva-Peixeira. No primeiro texto, o monte Arados acolhe o gato surreal, a ronronar sonho; no segundo, são as águas do rio, aromatizadas pelo vinho do Porto e por esta erva, que realizam um aventureiro Ramiro.
O título
Mirtilo espreita de um ancestral lugar da Devesa, já desaparecido, mas entranhado na memória, como a baga desse fruto silvestre escondido no musgo e na sombra. É, cada vez mais, um fantasma de um paraíso vegetal que vai sendo destruído, irreparavelmente. É um desejo feito alma penada, num tempo em que as sombras já não vêm das árvores, mas das varandas de betão!
Vasconcelos do Al, pseudónimo de João Costa, em Gatafunhos (2005), apresenta-nos o pequeno conto O Canteiro das águas. É uma metáfora do trabalho artístico da água nos penedos, semelhante ao duro mas sensível trabalho do pedreiro-artista. É a saga de um homem e de um rio. O pedreiro e o Douro numa eterna simbiose: "No fundo dos rios, as rochas tomam múltiplas formas, enquanto o barco desliza, a venerar o remador que fez dos cinzéis a sua imaginação." Aqui estão evidentes os rios Douro e Tâmega e os lugares do Monte, Ladário, Santa Cristina, Cano, Mosteiro, Lama e Fontelas.
Na crónica jornalística, salpicada de humor, intervenção e humanismo, foi mestre o Pe. David Teixeira, desde 1911 a 1955, no jornal O Marcoense. Natural da freguesia de Magrelos, este correspondente jornalístico foi pároco de Alpendorada, com residência em Matos. A peculiaridade da sua palavra estendia-se às penitências do confessionário. Se o penitente fosse pedreiro, substituiria a reza por um corte de levante. Este tipo de trabalho exigia mais esforço que um padre-nosso.
Graças a esta produção jornalística, poderemos rever a história, costumes e tradições de Alpendorada e Matos, durante quase meio século.
Entre 1940 e 42, o Convento de Alpendorada albergou o Alvorecer Claretiano, revista mensal de iniciação literária e científica, órgão interno do Seminário Apostólico dos Padres Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria. Os textos eram da responsabilidade dos alunos deste seminário, alojado no Convento de Alpendorada.
Ainda hoje, este local, pelo soberbo da paisagem, pode retirar uns versos a um viajante.
Texto: Vieira da Costa
Imagens: J.Costa. Fernando Costa e Artur Vieira